quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Era uma vez... Dom Quixote!


Trecho do livro O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra - Páginas 117 a 120
Do bom sucesso que o valoroso D. Quixote teve na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, mais outros sucessos dignos de feliz lembrança.

Nisto, avistaram trinta ou quarenta moinhos de vento dos que há naqueles campos, e assim como D. Quixote os viu, disse ao seu escudeiro: - A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra. - Que gigantes? - disse Sancho Pança. - Aqueles que ali vês - respondeu seu amo -, de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas. - Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as asas, que, empurradas pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho. - Logo se vê - respondeu D. Quixote - que não és versado em coisas de aventuras: são gigantes, sim; e se tens medo aparta-te daqui, e põe-te a rezar no espaço em que vou com eles me bater em fera e desigual batalha. E, isto dizendo, deu de esporas em seu cavalo Rocinante, sem atentar às vozes que o seu escudeiro Sancho lhe dava, advertindo-lhe que sem dúvida alguma eram moinhos de vento, e não gigantes, aqueles que ia acometer. Mas ele ia tão certo de que eram gigantes, que nem ouvia as vozes do seu escudeiro Sancho, nem via o que eram, embora já estivesse bem perto, antes ia dizendo em altas vozes: - Non fuxades, cobardes e vis criaturas, que um só cavaleiro é este que vos acomete. Nisto se levantou um pouce de vento, e as grandes asas começaram a girar, em vista do qual, disse D. Quixote: - Ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, haveis de pagar-me. E, isto dizendo, e encomendando-se de todo coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança enristada, arremeteu a todo o trote de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha à frente; e ao lhe acertar uma lançada na asa, empurrou-a o vento com tanta fúria que fez a lança em pedaços, levando consigo cavalo e cavaleiro, que foi rodando pelo campo muito estropiado. Acudiu Sancho Pança ao seu socorro, a todo o correr do seu asno, e ao chegar viu que não se podia mexer: tamanho fora o tombo que dera com ele Rocinante. - Valha-me Deus! - disse Sancho. - Eu não disse a vossa mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e só o podia ignorar quem tivesse outros na cabeça? - Cala, amigo Sancho - respondeu D. Quixote -, que as coisas da guerra mais que as outras estão sujeitas a contínua mudança: quanto mais que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão que me roubou o aposento e os livros tornou esses gigantes em moinhos, para me roubar a glória do seu vencimento, tal e tanta é a inimizade que me tem; mas, ao cabo do cabo, de pouco valerão as suas más artes contra a bondade da minha espada. - Que Deus faça o que puder - respondeu Sancho Pança.

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